O COBRADOR
Disciplina: Teorias da Narrativa
Nome do aluno: Fabio José Alfredo
Santos da Rocha
Curso: Letras - Português Literatura
Professora: Maria Cristina de Oliveira Prates
AVA 2
RIO DE JANEIRO – RJ
2021
Escrevo vendo o jornal local na TV. Ministério da Saúde
segurando as vacinas contra a COVID. Sinais de trânsito há cinco semanas sem
funcionar no Méier. Trens em Japeri sem poder passar por causa de furtos.
Assassinato de uma adolescente em baile funk ilegal na Vila João, em plena
pandemia, Japeri contratou sem licitação uma empresa que distribuiu kits de
comida com larvas... Alguém não deveria cobrar por tudo isso? O conto “O
cobrador” é o primeiro do livro homônimo de Rubem Fonseca. Um choque de realidade.
Visceral, intenso, direto e absurdamente atual. O cobrador surge do povo que
sofre, que é roubado pelo governo, abandonado pelos pais e abraçado pelo caos
da sociedade com muita desigualdade. Nasce como uma flor assassina, distorce
tudo como um Talibã tupiniquim e cobra com sangue.
São quase vinte páginas do
narrador-personagem-assassino-louco dando sua visão de mundo e descrevendo o
que faz e o que pensa. Esse relato é como um soco no estômago do leitor. Por
que? Porque a realidade que produziu aquele maluco de físico franzino e sem
limites é a nossa realidade. A sociedade dele é a nossa sociedade, nosso
cotidiano. Tudo segue igualzinho.
Mas talvez o mais desconcertante do conto seja a narração.
Pois entramos na visão de mundo do cobrador e conseguimos ter alguma empatia.
Mesmo sendo um assassino. O colégio era ruim e demoliram, os dentes todos
estragados… Imaginamos o restante de sua infância e juventude e quase torcemos
por ele. Talvez porque ninguém cobre. E porque a máquina do mundo segue
produzindo sofrimento e injustiça. Porque o Brasil segue matando tanta gente de
fome. Porque os mais ricos em geral só se preocupam em manter seus privilégios.
O texto começa num consultório dentário, onde um dentista
forte (“Era um homem grande, mãos grandes e pulso forte de tanto arrancar os
dentes dos fodidos.”) arranca um dente da personagem e tenta cobrá-lo. É aí que
ele se apresenta como cobrador: “Eu não pago mais nada, cansei de pagar!,
gritei para ele, agora eu só cobro!” e deu um tiro de 38 no joelho dele. Logo
depois, se arrepende de não ter logo matado.
A saga do cobrador segue com ele seguindo seus impulsos e
vontades na cobrança: estraçalhando o para-brisa de uma Mercedes com um tiro,
matando um vendedor de rádio com um tiro de sua Magnum com silenciador (que ele
faz o leitor quase ouvir, com um “puf”), estuprando mulheres bonitas em casa se
passando por bombeiro etc. O texto de Rubem Fonseca nos surpreende com alguma
humanidade do cobrador quando mostra a relação dele com uma velhinha (Dona
Clotilde) que o havia “apanhado na rua”. Passaram a morar juntos e ele a
ajudava com injeções. Ainda no breve intervalo de maior humanidade, o cobrador
conhece e começa a se relacionar com Ana. Logo depois, volta aos assassinatos,
agora se deslocando da zona sul da cidade do Rio de Janeiro para a Barra da
Tijuca, onde estreia seu facão.
O conto termina numa crescente, quando o cobrador conquista
uma quase suicida. Ela o convence a aprimorar sua “missão” (que seria cobrar da
sociedade, em resumo, por tanto sofrimento). Assim, bem na noite de Natal, o
cobrador substitui seu 38 e seu facão de arrancar cabeças e armas menos
poderosas por uma bomba, para matar muito mais gente. Passa de serial-killer a terrorista. Um detalhe
muito interessante é que o cobrador se apresenta para sua musa Ana
(mulher-palíndromo, linda, que não entende seus poemas) como poeta. Eu lembro
deste poema de Vinícius de Moraes e agora o releio com estranhamento:
“O POETA
A vida do poeta tem um ritmo diferente
É um contínuo de dor angustiante.
O poeta é o destinado do sofrimento
Do sofrimento que lhe clareia a visão de beleza
E a sua alma é uma parcela do infinito distante
O infinito que ninguém sonda e ninguém compreende.
Ele é o eterno errante dos caminhos
Que vai, pisando a terra e olhando o céu
Preso pelos extremos intangíveis
Clareando como um raio de sol a paisagem da vida.
O poeta tem o coração claro das aves
E a sensibilidade das crianças.
O poeta chora.
Chora de manso, com lágrimas doces, com lágrimas tristes
Olhando o espaço imenso da sua alma.
O poeta sorri.
Sorri à vida e à beleza e à amizade
Sorri com a sua mocidade a todas as mulheres que passam.
O poeta é bom.
Ele ama as mulheres castas e as mulheres impuras
Sua alma as compreende na luz e na lama
Ele é cheio de amor para as coisas da vida
E é cheio de respeito para as coisas da morte.
O poeta não teme a morte.
Seu espírito penetra a sua visão silenciosa
E a sua alma de artista possui-a cheia de um novo mistério.
A sua poesia é a razão da sua existência
Ela o faz puro e grande e nobre
E o consola da dor e o consola da angústia.
A vida do poeta tem um ritmo diferente
Ela o conduz errante pelos caminhos, pisando a terra e
olhando o céu
Preso, eternamente preso pelos extremos intangíveis.”[1]
REFERÊNCIAS
FONSECA, Rubem. O Cobrador. 4.ed. Rio de Janeiro: Agir, 2010.